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quando o que vale é a hora marcada no ponto e não a  confiança no servidor, quem perde é a criatividade.

O ponto da discórdia

Considerado signo de moralização administrativa, o relógio ponto eletrônico oculta a desconfiança no servidor e o fim da criatividade nas instituições.

Jorge Barcellos - Doutor em Educação

Publicado: 2015-12-14


Muita gente me perguntou detalhes sobre o drama dos servidores públicos da Câmara Municipal de Porto Alegre que descrevi em "O Presidente Avarento".Desde o dia 3 de novembro, a Câmara Municipal de Porto Alegre passou a contar com ponto eletrônico para seus funcionários. Os crachás foram distribuídos para os servidores no último dia 28 de novembro, dia do Funcionário Público no Brasil, o que não deixou de ser uma forma irônica do seu Presidente, Vereador Mauro Pinheiro (PT), de homenagea-los em seu dia.

Inventado em 1888 por Wllard Le Grand Bundy, joalheiro morador de Nova York, o equipamento veio a substituir o funcionário que era contratado exclusivamente para sentar-se no portão da entrada da empresa e anotar o horário de entrada e saída dos trabalhadores. Seu irmão, Harwol, deu-se conta da importância do equipamento e juntos patentearam o relógio ponto e fundaram a Bundy Manufacturing Company. A empresa inventou diversos outros relógios ponto, expandiu-se para inúmeros países e em 1924 passou-se a chamar “International Business Machines”, conhecida como IBM.

Acredita-se que o relógio ponto aumenta a produtividade porque controla o horário de trabalho. Esta é a versão que o Capital quer que acreditemos. O relógio ponto da Câmara é criticado pelo Sindicato de Servidores (www.sindicamara.com.br) pela forma de antidemocrática de sua regulamentação. Estudiosos afirmam que ele desestrutura a culturas de trabalho local, impõe um regime de produtividade diferente do regime natural e retira o poder de controle de chefias superiores, transferindo-o para uma máquina, isto é, desumaniza relações de trabalho que deveriam ser estabelecidas na base da confiança.

O relógio ponto é uma imposição do Capital de ritmos de tempo de trabalho que não eram vividos por outras gerações, traz infelicidade ao trabalhador e não é sinônimo de produtividade. No livro Felicidade S.A, Alexandre Teixeira defende a tese de que flexibilidade de horários e valorização da cultura dos trabalhadores é essencial à produtividade. Com tamanha tecnologia disponível, horários rígidos não fazem mais parte do moderno conceito de trabalho, principalmente intelectual, que pode ser feito em lugares e horários distintos. Modernas empresas, como Google, já fazem isto, ao contrário do Legislativo da Capital, onde modernidade é adoção do controle e vigilância. É uma pena.

A verdade é que está tudo fora do lugar. Todos defendem o relógio ponto porque o Capital teve sucesso em conseguir disciplinar a humanidade para o trabalho. Qual é a anormalidade? O controle do tempo: vivemos por séculos o tempo natural, das estações e do dia e da noite. Agora temos que nos disciplinar ao tempo de fábrica e das prisões. É só ler “Vigiar e Punir” de Michel Foucault.

O que deveria ocorrer é o contrário, é a confiança. Você precisa ter confiança, você precisa saber que o servidor ou chefia estará ali para o serviço e isso inclui a disposição do tempo. Chegou tarde? Fique até depois. Ninguem deveria ser obrigado a bater ponto e todos deveriam cumprir seus horários, eis a questão.

A medida é populista, eleitoreira e demagógica: vereadores não batem ponto. A medida é desagregadora porque córroi a cultura de trabalho do legislativo baseada na confiança. A medida é desumanizadora porque desapodera chefias e transfere o poder para uma máquina. A medida é ilusória porque você produz mais em função de metas de trabalho e satisfação que obtém em seu ambiente de trabalho do que pela imposição de horários rígidos. Eles nos tornam mais infelizes.

A maioria dos servidores da Câmara há anos trabalha acima do dever, isto é, das obrigações impostas pelo Plano de Cargos e Salários. Ações e serviços são executados porque os servidores se engajaram no legislativo. Meu cargo é de ensino médio, mas sou doutor para atender estudantes. Trabalho em uma Seção que a lei determina serviços limitados mas que oferece muito mais. Estive disponível para horas extras que foram compensadas em clima de liberdade e não de medo.

O relógio ponto muda tudo isso: o servidor deixa de ser cidadão e passa a ser objeto, quer dizer, você deixa de ser respeitado e passa a ser desrespeitado. Era só observar o olhar do cinegrafista da RBS que filmava os servidores na certeza de que ali estavam “vagabundos”, o que não sou. Muitos servidores estavam em situação irregular, é verdade, o problema é que eu e a maioria não estava. É o “dano colateral” (Zygmund Bauman) da politica de Mauro Pinheiro: para que os maus possam ser punidos é preciso que se punam os bons.

Quando mencionei que o Jornal do Almoço (9/12) mais uma vez noticiou a implantação do ponto eletrônico pelo presidente da Câmara Municipal de Porto Alegre como se não houvesse problemas reais no presente mas apenas problemas anunciados para o futuro. Mas a verdade é que os problemas do presente também são graves.

Primeiro: o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul acusou em seu relatório que, caso o contrato de R$ 306.320,00 para a instalação do relógio ponto da Câmara Municipal de Porto Alegre fosse pago na integralidade, seu presidente teria de devolver, do próprio bolso, mais de R$ 150.000,00 aos cofres públicos. Que fez o Presidente da Casa? Repactuou o contrato conforme termo aditivo firmado em 30/11/2015, diminuindo o valor do contrato em quase R$ 130.000,00. A assinatura do termo aditivo oculta o fato de que houve superfaturamento na aquisição do serviço.

Segundo: há dois sistemas básicos do relógio ponto no Legislativo, o RONDA e ERGON, mas o problema é que eles não se comunicam; RH 24 horas, único sistema que o servidor acessa, não dá a totalidade de informações que o servidor necessita; os cursos de formação foram dados de maneira apressada e ainda existem dúvidas de preenchimento de formulários. Ao invés de trabalhar, os servidores passam o dia administrando o seu ponto. O ponto eletrônico foi objeto de três regulações e ainda revela problemas.

O pior é luta do Presidente da Câmara contra os servidores para retirada de direitos. No final da tarde do último dia 07 de dezembro, a Justiça gaúcha deferiu o pedido de liminar impetrado pelo SINDICÂMARA no processo nº 1.15.0204124-4 TJ/RS e barrou a redução de salários de diversos servidores que recebem gratificações à título de insalubridade. Isso sem contar a retirada do direito de estudar do funcionário estudante, o não atendimento da pauta de reividicações dos servidores e outras iniciativas.

A notícia dada pelo Presidente da Câmara de que estuda acompanhar os servidores pelo chip de seu cartão ponto é digna de 1984, de George Orwel. Mas porquê não mais? Como desenvolvi, porque não implantar logo de uma vez chips nos servidores públicos, obriga-los a doar seus órgãos e colocar neles tornozeleiras como se fossem presidiários? É só fazer um outro termo aditivo com a Procempa. Quer ser vigiado? Faça concurso público. Nunca a transformação do servidor público em objeto foi tão clara e cruel.


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


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Pensamento Contemporâneo

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