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a pressa do mundo nos faz esquecer a ideia proposta por braudel de "longa duração",

O mundo é o limite

A passagem silenciosa do 40 anos da morte do historiador Fernand Braudel mostra que vivemos a época do imediato contra a longa duração 

Jorge Barcellos

Publicado: 2015-12-21


No último dia 27 de novembro completou-se 40 anos da morte de um dos maiores historiadores do século XX, Fernand Braudel (1902-1985). Um dos pilares da historiografia deste século, seu livro "O mediterrâneo e o mundo mediterrânico de Felipe II", é considerado uma das obras primas mais importantes de nossa época, junto com Economia e Sociedade, de Max Weber. Curiosamente, poucos assinalam a data, como se toda a ciência histórica do Ocidente não necessitasse mais considerar o conceito de longa duração, economia-mundo e espaço-tempo. Ao contrário, mesmo vivendo numa era da velocidade (Paul Virilio) os observadores de sua obra são unânimes em afirmar que suas obras posteriores, como "Civilização Material, Economia e Capitalismo", "Gramática das Civilizações" e "Reflexões sobre a História", ainda inspiram historiadores e cientistas sociais em todo o mundo. Braudel é um marco insuperável e por isso continua atraindo milhares de leitores. Detalhes da vida e da trajetória deste intelectual podem ser vistas sua biografia clássica, publicada pela Record, de Fernand Braudel, uma biografia, de Pierre Daix. O autor, historiador de arte moderna, autor de biografias sobre Gauguim e Picasso, seu amigo pessoal desde os anos 1960, realiza uma obra original e instigante que narra ao mesmo tempo a aventura de Braudel em meio a peripécias, traições e disputa pelo poder no meio universitário francês.  

Daix armou-se bem para fazer isso. Depois de acompanhar por mais de quarenta anos o desenvolvimento das ciências humanas, principalmente da história como redator-chefe da revista Lettres Françaises e como cronista do períodico Quotidien de Paris, torna-se amigo pessoal de Braudel até sua morte, em 1985. Braudel, uma biografia, publicada pela Flamarion em 1995 no mesmo ano em que Giuliana Gemelli publica a sua obra homônima, pela editora Odile Jacob de Paris - as duas são as únicas obras disponíveis sobre o notável historiador na atualidade. As diferenças são notáveis. Enquanto Gemelli prefere considerar Braudel como exemplo de um "pensamento inquieto" (Vattimo), o ponto de configuração de uma nova epistemologia, como Ilia Prigogine e René Thom, Daix concentra sua atenção na influência de Braudel no contexto cultural dos historiadores de sua geração, na revolução conceitual provocada pelos "Annales", por ele dirigido, nas reações às vezes violentas às suas teses e na sua gradativa transformação em mandarim da intelligentzia francesa na École Pratique des Hautes Études de Paris. Após considerar a importância do estímulo produzido por suas ideias entre os historiadores e praticantes de disciplinas afins, Daix defende a tese de que a obra de Braudel só foi possível por que ele foi capaz de observar a França a distância - dez anos na Argélia, três no Brasil, onde viveu de 1935 a 1937 dando aulas na Universidade de São Paulo e cinco anos como preso em um campo de refugiados. Acessando uma documentação inédita, apoiado pela família do autor - principalmente sua filha, Françoise Pineau -, Daix reconstrói a trajetória de Braudel através de seus discursos, obras e das dezenas de depoimentos que recolheu dos intelectuais mais importantes deste século, entre eles Louis Althusser, Jean-Pierre Vernant, Roland Barthes, Marc Ferro e Maurice Agulhon. Não poderia haver dúvidas sobre qual seria o próximo passo de Daix - analisar o que pode fazer do obscuro jovem loreno o expoente máximo de uma "nova história" à qual conseguiu dar repercussão internacional sem precedentes.

Como os filósofos, o autor começa sua abordagem pelas coisas primeiras, que no caso de Braudel, remetem a sua origem em Luméville-en-Ornois, aldeia lorena de fronteira onde era numerosa a família Braudel. Nascido a 24 de agosto de 1902, a origem camponesa o marcará profundamente. Seu pai é "professor de aldeia", no corpo de pedagogos da zona rural, um "anticlerical intransigente" com quem Braudel teve problemas a vida toda (Daix fala de "surras exemplares") "A casa em que eu vivia, construída em 1806, manteve-se tal qual, ou quase, até 1970, belo recorde para uma simples casa de camponeses. Acredito que esta longa vivência campestre, freqüentemente renovada, teve sua importância para o historiador que eu viria a ser", diz Braudel. Devido a problemas de otite, foi viver em Paris com a avó paterna, Emile Braudel-Cornot. Entre 1920-1921, completa sua licenciatura, em um ano, não só por que o número de estudantes era pequeno, mas por que o Estado esforça-se em reconstruir rapidamente a educação após a guerra. Queima etapas, forma-se num curto espaço de tempo. Daix revela que Braudel opta pela história porque a julga mais ao seu alcance, devido aos muitos conhecimentos acumulados pelo jovem interiorano antes de chegar a Sorbonne. "Fui dar não na vocação de historiador, mas na profissão de historiador. A paixão veio depois", diz Braudel.

A paixão vem com a descoberta do mediterrâneo. Após ser rejeitado no concurso de agregação, Braudel volta-se para o Liceu de Constantina, na Argélia. Graças as vantagens coloniais, dispõe de mais dinheiro para viver com liberdade e uma sensação de mudança de hábitos e ambiente que é fundamental para a gestação de O Mediterrâneo. Em outubro de 1923, desce ao Midi, ao Sul da França, e vê pela primeira vez o mar. "Foi para mim tal surpresa! Eu não conhecia o mar, vejo o Mediterrâneo e confesso que é um presente dos deuses! Para mim foi como começar a viver..." diz Braudel. Não se pode esquecer que na sua formação, a geografia tem um peso grande, devido aos anos de aprendizado com professores extraordinários que foram alunos de Vidal de la Blanche, como Emmanuel de Martonne (1873-1958), Albert Demangeon (1872-1940) e Lucien Gallois (1857-1940), que leva-o a um entendimento do espaço completamente distinta e original, que liga indissoluvelmente história e geografia. Entre 1925-26, ele presta o serviço militar inicialmente em Eifel, a beira do Palatinado, na região da Mogúncia, como parte do exército de ocupação francês, aonde voltará quinze anos depois, por ironia do acaso, como prisioneiro de guerra. Retorna a Argel, ministra aulas no Liceu Bugeaud, e depois, na faculdade, onde permance até 1932. Nos três anos em que leciona no Brasil, de 1935 a 1937, Braudel inicia a redação de sua tese sobre O Mediterrâneo, pois até então ele ainda está em dúvida sobre o verdadeiro centro de seu interesse "Foi no Brasil que me tornei inteligente", diz. Cercado pelos exércitos alemães quando servia como tenente de artilharia ao sul de Lauter, Braudel é preso em junho de 40, passando cinco anos num campo de prisoneiros em Lübeck. Daix assinala que durante todo o tempo de sua prisão mantem correspondência com Febvre, que o incentiva a esquecer Felipe II e tomar o mar como seu tema. De memória e com uns poucos livros emprestados pelos alemães, Braudel redige cadernos de notas que envia ao amigo no exterior sobre O Mediterrâneo. Nele desenvolve sua visão de uma história interdisciplinar que usa a geografia, a política, os diários, tudo o que possa falar de um tempo passado em oposição direta à história dos meros fatos e personagens, levantada a partir de documentos considerados confiáveis. Projeto arrojado, passa por diversas reformulações: deixa de abranger o período 1558-1570, como o projeto original apresenta e passa a abranger o período 1550-1600. Nessas idas e vindas, Daix transcreve uma carta resposta a uma americana, June Mann, onde Braudel diz que começou a escrever primeiro os capítulos da terceira parte e depois resolveu supera, passando a uma escala de dois séculos.

Não é difícil concluir que Daix tem o biografado na mais alta estima, idolatra-o a ponto de não esquecer nenhum detalhe da reconstituição de seu dia a dia. Quer retratar o Braudel notável e para isso, anota uma a uma, cada descrição: de seus pares, emerge um homem extraordinário, inesquecível historiador, bela figura humana, lúcido e excelente professor, ouvinte atento e mordaz na crítica; de sua filha Paule, o pai dotado de uma "memória de elefante", com uma voz envolvente e cativante que encanta as platéias e capaz de dar uma visão quase cinematográfica dos dados; e finalmente, de seus críticos contemporâneos, como Perry Anderson, Daix extrai pérolas do tipo "Braudel sempre aspirou às totalidades, mas seu forte são os detalhes". É uma tentação continuar citando a palavra de todos os amigos e familiares que Daix entrevistou sem exceção - mas é preciso observar que não significam simples elogio. Para o biógrafo, Braudel é a encarnação da idéia de mestre da história, como Heródoto, é historiador universal que é capaz de iniciar uma linha de estudos que não existia antes, a da história da França no contexto da civilização européia "que vem a se tornar fundamental nos estudos que se seguiram após. Através da VI seção e da Maison des Sciences de l'Homme, sua visão é o fermento de sua Obra Magna, tanto mais que se impunha a ele, teoricamente, através dos questionamentos da antropologia, do desenvolvimento da economia e da informação planetária" escreve Daix, distante da concepção de Burke, para quem os pais fundadores da nova história foram Bloch, Febvre e Braudel. Para Daix, o pai da nova história é Braudel. E ponto final.

A maior parte da narrativa de Daix não surpreenderá os leitores de O Mediterrâneo, ao descrever os conceitos e méritos da obra de Braudel. Analisa o contexto em que cada uma de suas obras emerge e surpreende no ponto alto do livro, onde Daix reconstrói o diálogo entre Braudel e o seu tempo, através dos capítulos dedicados a cada um dos seus "pequenos momentos". Ao todo, em trinta e seis seções espalhados por dezesseis capítulos, Daix discorre detalhes desde a passagem de Braudel pela Argélia, os anos de gazeta, o interlúdio parisiense de 1932, a école, o Brasil, o cativeiro em Mogúncia, a volta a Paris, a aula inalgural no Collège de France e o auge do seu reinado. Ao fazer isso, Daix revela que seu objetivo não é exclusivamente o biográfico, mas o de contar toda a história da geração de pensadores que teve Braudel como centro, entre eles Ernest Labrouse, Claude Lévi-Strauss e Emmanuel Le Roy Ladurie. Daix discute em detalhes os novos problemas da história, o abalo sísmico de 1968, a face e as consequências do surgimento dos novos Annales para Braudel. A essa altura do livro, destaca-se a relação com Michel Foucault, onde Daix aponta que, embora destoando de sua tese sobre a morte filosófica do homem, em tudo o mais Braudel tinha-lhe a "mão estendida": ele foi o grande eleitor de Foucault para o College de France "aos olhos de Braudel, como aliás aos de Barthes, o que Foucault propagandeia é efetivamente, no fim das contas, uma "história estrutural", explica o biógrafo. Daix não nega que Lucien Febvre e Marc Bloch (fuzilado pelos alemães em 1944 em território francês), foram autores que marcaram profundamente a obra de Braudel. O ponto que salienta é os elementos que ele incorpora - o interesse pela caracterização da civilização material, a história econômica mais voltada para processos de trabalho, de Bloch, ou a preocupação com a alma humana e suas terríveis dúvidas, de Febvre - que através da influência de Braudel marcam toda a geração de historiadores do pós-guerra.

Contra as tentativas contrárias à adoção da interdisciplinaridade, feita pelos novos historiadores, Daix afirma que Braudel foi o primeiro a beber em várias fontes no campo da história, o primeiro a por em prática o diálogo com outras disciplinas. Sobre a criação da Maison des Sciences de l’Homme, Daix diz que foi fundamental por reunir numa instituição o que há de mais relevante no mundo intelectual francês e que ajudou a deslanchar a carreira de alguns dos melhores historiadores da terceira geração dos Annales. O biógrafo reconhece que quando Braudel vem a falecer em 1985, é sem dúvida o historiador profissional mais influente do mundo, dono de grande poder durante o último quartel de sua existência. Daix explica que Braudel conquista essa posição devido a quatro fatores: a reputação conquistada com O Mediterrâneo; sua relevância no meio intelectual consolidada por seu trabalho de editor (1956-68) da revista Annales; a direção do Centre des Recherches Historiques na École des Hautes Études e pelo exercício da presidência (1956-72) do Sixième Section da École. Braudel escala todos os postos de prestígio na hierarquia universitária francesa: saudado por Maurice Druon na Academia, recebido por Lévi-Strauss no Collège de France, desfruta do respeito de seus pares que lhe possibilita dominar a École durante anos até 1972, data de seu afastamento.

Daix deixa transparecer certa melancolia ao notar que tanto poder na mão de seu admirado amigo estimulou desafetos. Lembra que Braudel costumava dizer: "Fui atacado pela esquerda e pela direita, na medida em que minha boa vontade fez de mim um homem nem de direita, nem de esquerda". Os ataques são da Nouvelle Critique e de François Furet, as criticas dos prestadores de serviço que queriam passar a pesquisadores titulares. Daix transcreve um depoimento de Marc Ferro a esse respeito "Houve, digamos assim, marolas na Ecole. Muitas pessoas que eu conhecia questionaram Braudel, e mesmo alguns diretores de estudos, como Mandrou. Braudel ficou furioso com esta história ao retornar. Lembro-me de Barthes e Raymond Aron pálidos como lençóis". No pós-Braudel, Daix dissipa sua melancolia. Ele enumera todo o reconhecimento que sua morte provoca em seus pares. Transcreve a entrevista de Georges Dumézil publicada em novembro de 1985 "Seu gosto pelo poder foi às vezes mal compreendido. Só desfrutava do poder para criar, para servir ao conhecimento unitário do homem". Relata o que Georges Duby publica no Liberation "ele era a própria magnificência. Havia nele algo de principesco". Lembra o artigo de Emmanuel Le Roy Ladurie, no L'Express onde assinala que "o maior historiador contemporâneo era um criador de império". Destaca o sentimento vivido por Le Goff, um dos mais importantes historiadores da segunda geração dos Annales "a morte inesperada de Fernand Braudel é um dos maiores choques de minha vida profissional".

Braudel de Daix é o homem que reintroduz a geografia no coração da história. Ele reabilita os rochedos, os climas, os ventos, as chuvas, em O mediterrâneo "O êxito de Braudel pode ser avaliado incontestavemente pelo fato de que sua obra é ainda hoje a melhor maneira de responder às problemáticas que entevemos como as do século XXI francês, e inseparavelmente, europeu". Os quarenta anos de sua morte deixam saudades em a todos os historiadores. No colóquio de Chatêauvalon, na tribuna, um mês antes de morrer, diz Braudel: "Diverti-me um bocado. Pessoas de quem gosto muito me disseram: "Seja razoável!. Vocês acham que eu segui o conselho?"


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


Publicado en

Pensamento Contemporâneo

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