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DEPUTADOS ESTADUAIS APROVAM "PACOTE DE MALDADES" DO GOVERNADOR JOSÉ IVO SARTORI SEM PARTICIPAÇÃO SEM DEBATE COM A SOCIEDADE E NA CONTRAMÃO DOS LEMAS DA INSTITUIÇÃO  

Um parlamento sem vergonha

As quatro horas da manhã desta terça-feira encerrou-se a sessão plenária da vergonha, onde direitos dos servidores públicos foram esmagados por um parlamento submisso ao governador.

Publicado: 2015-12-29


A psicologia já demonstrou há muito tempo a importância da vergonha no agir e pensar moral. Desde a Retórica de Aristóteles, o sentimento de vergonha é tema da reflexão moral dos grandes filósofos. Piaget falava do “medo moral de decair perante o olhar da pessoa respeitada” enquanto que o moralista Jankelenvitch falava “sinto vergonha, logo sou”. A votação dos projetos de lei do governo Sartori pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul "ao apagar das luzes" (literalmente) às quatro horas da manhã desta terça-feira revela muito da personalidade moral do parlamento gaúcho: é um dos raros momentos em que o legislativo tem para refletir sobre sua identidade, “quem ele é”, se é capaz de situar-se em relação a valores. Isso significa saber se a Assembleia gaúcha e seus deputados sabem se situar na relação entre o bem e o mal, entre o que produz bem e o que produz mal, se tem capacidade de distinguir estes valores em suas ações. A tendência natural da instituição é pensar a si mesmo em termos de valores positivos, transformando o equivalente “vida plena” em “legislativo pleno”. Então, o que significa a aprovação dos 27 dos 31 projetos do governo estadual pela Assembleia em plena madrugada e sem debate algum?

Os projetos apresentados, salvo raras exceções, são notadamente o espaço do mal pelo prejuízo que trazem aos servidores públicos, a máquina pública, a ideia de bem público e de coisa pública. Na fachada da Assembleia Legislativa uma faixa contém os dizeres “A casa dos grandes debates”. Covardemente, o legislativo gaúcho fez na noite do dia 28 é exatamente o contrário, com suas portas trancadas ao público, com sua guarnição militar às portas, com sua sessão invadindo a noite que negou o ethos dialógico que deve ser característica do parlamento. Pois a casa do povo é a casa do diálogo, o que foi negado pelo comportamento de seu Presidente. O diálogo e o debate favorecem um parlamento autônomo – exatamente o que outra faixa afixada na frente do parlamento onde se lê  “democracia se faz com parlamento forte “ quer subentender: ao contrário, a submissão a vontade do governador só fez o parlamento mais fraco porque é no diálogo que o legislativo investe sua natureza e tira sua força.


Brigada militar impede acesso da população e servidores públicos a sessão em que foram votados projetos de lei de interesse da sociedade.

Deputados devem manter valores morais não para tirar proveito para si, mas para garantir sua identidade e a força da instituição. Se o parlamento não pode ser a “casa dos grandes debates”, então o que ele é ? Resposta: uma simulação. É o que acontece quando deputados fingem ser deputados do povo quando são "peões" do governo não podem agir moralmente porque os seus valores (a defesa do bem), a sua natureza parlamentar, contrária os interesses do governo Sartori. A aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal eximindo o governo de qualquer responsabilidade para com seus servidores é o desapreço aos valores mais sagrados do que é o serviço público, dos direitos públicos e revela o lugar que dão os deputados aos valores públicos nas suas práticas, isto é, no momento de tomada de decisão, no voto e somente aqueles que votaram a favor dos servidores foram capazes de manter sua dignidade.  Quando o valor “justiça” está em lugar inferior ao de “subordinação”, o deputado irá seguir a determinação do governo e não a de suas bases sociais ou de justiça funcional. Foi o que ocorreu. Até agora era difícil encontrar deputados totalmente imorais, ainda que o modo como foi conduzido o processo de votação permita concluir que em algumas circunstâncias, um parlamento – salvo raras exceções – pode se comportar de maneira imoral. Deputados de vida moral exemplar se pautam com o compromisso com os valores morais contrariando interesses próprios ( pressões de partido, etc) quando a moral assim exige. Ser agente moral deveria e ser deputado deveria ser a mesma coisa. Mas não é.

Ao votar contra o interesse dos servidores públicos, ao votar contrariando o que disseram em sua campanha “ a defesa do interesse público, etc, etc”, tais atos cobram um preço muito alto dos deputados porque constróem a representação que o político tem de si mesmo de agora em diante: o deputado se verá com alguém de valor ou alguém submisso ao poder maior pelo modo como votou e quando o deputado se der conta que a imagem que faz de si mesmo não é algo integrado, ele chegará a conclusão de que ele não é o que ele queria ser. Ele então entrará em choque. Reconhecer que age por orientação, que não tem vontade própria, que não tem valores porque lutar tem uma imensa força psíquica: o deputado verá que não construiu para si mesmo uma representação positiva de político. O sentimento de inferioridade, de ser um político de menor valor corroerá seu espírito e será causa de neuroses e comportamentos antissociais, corroendo a relação entre o político e seu gabinete, entre o político e sua família.

Os políticos não sabem mas ao votar contra a justiça pedida por uma imensa maioria fazem um imenso investimento afetivo. Esse investimento cobra o seu preço no sentimento de vergonha que sentem pelo que causaram. O sentimento de vergonha é este embaraço ou rebaixamento diante do outro causado pela contradição entre o discurso de campanha e o seu voto no momento de perigo. Os deputados cumprem o papel institucional de subordinação, afinal são parte integrante da bancada governista: mas eles ainda assim tinham a opção de agirem conforme sua consciência mas não o fizeram. O custo é o sentimento de vergonha pelo juízo alheio que sentem de seus eleitores, de seus servidores, que também os elegeram. Diz Espinosa que “a vergonha é a tristeza que acompanha a ideia de alguma ação que imaginamos censurada pelos outros” e não é toa seu valor quando vemos que sociedades inteiras como a japonesa são construídas por este sentimento que serve de base para a sociedade. Se um deputado sente vergonha do que fez é porque de alguma forma foi capaz de julgar a si próprio e mesmo este tem salvação: mas quando um deputado sequer sente vergonha de atos como esses, então o parlamento está perdido.

A vergonha é motivada pela exposição e por esta razão a primeira medida do Presidente da Assembleia gaúcha foi afastar o público do espaço em que vive o envergonhado, no caso, o Plenário do Legislativo. As cenas eram claras no noticiário noturno: galerias pouco ocupadas, senhas limitadas de acesso, barreira policial, tudo fazia ver a vergonha sentida pelos deputados pelos atos que estariam por praticar. Nunca foi o sentimento de segurança o promotor – veja, é preciso acalmar os ânimos, etc, etc, – mas sim o sentimento de vergonha. O plenário possui espaço para platéia justamente para isso, para mostrar que seu comportamento é público e objeto de um juízo que promove o orgulho de uma ação bem feita ou a vergonha da exposição que mostra a capacidade de contrariar seus valores. Mas estar sob o olhar de outro é também estar sob seu poder, eis a questão.


É FORTE A ASSEMBLEIA QUE SUBORDINA SUA DECISÃO A DECISÃO DO GOVERNADOR?

O deputado envergonha-se do comportamento que foi obrigado a tomar, mas esta obrigação nunca foi absoluta. Ele podia ter votado contrário as orientações de seu partido em nome de seus próprios princípios; o deputado envergonhado sabe que contribuiu para a gênese da vergonha, é seu ato que a causa, “vão pensar mal dele” é um vaticínio que não pode suportar. Ele sabe que irá receber retaliações de seu eleitorado, de que não irão mais votar nele, o que arrisca seu maior capital, o capital político. Diz o educador Yves La Taille:” Na vergonha, portanto, o decair perante os olhos alheios deve corresponder a um decair perante os próprios olhos”. É esse julgamento por si próprio que espera os deputados no dia seguinte as votações.

Talvez tenha sido pensando nisso que os deputados deixaram para o dia de hoje (29/12) as piores votações que teriam pela frente, como o fim da licença-prêmio dos servidores. Processo abominável contra os servidores que garante a desagregação de direitos funcionais, o que está sempre em questão é a liberdade de escolha. Mas assim como quem rouba por necessidade não o faria em outro contexto e quem rouba por falta de honestidade o faria em qualquer contexto e é neste valor que o campo jurídico determina a total exclusão social, da mesma forma o político sem princípios morais o é em qualquer contexto, vota contra os principios da sociedade e as necessidades do serviço público. Politicos que agem sem vergonha alguma do que fazem estão sempre a venda, sempre aguardando o melhor benefício, não é assim que sugere o caso do deputado Jardel, acusado novamente de corrupção?


Movimento de servidores e sociedade manifestou-se contra os projetos de lei de sertori, mas a vontade pública não foi suficiente para demover o apoio dos deputados aos projetos. casa do povo? 

É possível um deputado agir errado, na contramão do desejo de justiça, sem sentir remorso? Os deputados que aprovaram a Lei de Responsabilidade Fiscal agiram contra os servidores públicos, na sua totalidade sentiram sua auto-estima rebaixada porque algo lhes afetou profundamente o sentimento de honra, de político honrado: a partir de agora, sabem que seu sentimento de dignidade pessoal ficou diminuído por seus gestos. Se o sentimento de inferioridade sentido pelo deputado for capaz de fazê-lo renunciar a sua posição, será um político honrado; se ao contrário, ceder e ficar “vermelho”, ainda tem algo da honra que podem salva-los, mas aqueles que sequer ficam vermelhos, isso sim, mostra que estamos diante de um político sem vergonha, porque sem honra.

Espera-se que nossos políticos sejam homens honrados. Que façam suas ações de modo a aumentar a honra que a eles atribuímos. Se sentirem vergonha do que foram capazes de fazer, ainda assim, revelam que há uma possibilidade de salvação – como havia em Darth Vader em O Retorno de Jedi. Espero que lá no fundo dos deputados ainda clame por um espaço o sentimento de honra. Ele pode vir a tona nas próximas votações rejeitando o projeto de fim da licença-prêmio, única alternativa salvadora para os deputados gaúchos. Como diz o filósofo Rawls, é preciso auto-respeito, ter a força motivacional necessária ao agir para derrubar os projetos do governador porque respeitar os servidores públicos é respeitar a si mesmo.


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


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Pensamento Contemporâneo

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