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Barco cisne negro 

Uma vaquinha para um cisne

Campanha de doação para recuperação de naufrágio coloca a questão: qual é o limite da caridade?

Jorge Barcellos - Doutor em Educação

Publicado: 2016-02-19


Com os temporais que assolaram Porto Alegre no último dia 19 de janeiro, a cidade ficou transtornada. Árvores derrubadas, prédios danificados, uma enorme extensão de danos materiais transformou de um dia para outro a paisagem de Porto Alegre. Uma grande ação da Prefeitura, envolvendo diversos órgãos, foi iniciada com o objetivo de recuperar a cidade. 

Entre as vítimas do vendaval, pela primeira vez, o barco turistico oficial da cidade, o Cisne Branco, adernou no caís junto à Usina do Gasômetro. A dificuldade de recuperação, associada a imagem simbolo da cidade que o barco carrega fez com que seus proprietários iniciassem uma campanha de doação pela pela reconstrução do Cisne Branco (https://www.vakinha.com.br/vaquinha

/unidospelonossocisnebranco). A campanha ainda está distante de atingir seu objetivo: dos R$ 950.000,00 necessários para a recuperação do navio, apenas R$ 350,00 (trezentos e cincoenta reais), ou 0,23% do valor necessário, foi reconhecido. Culpa de nosso egoísmo em ajudar o próximo?

Seus apoiadores e proprietários vieram a público justificar a importância da contribuição voluntária dos cidadãos,  demonstrando o amplo leque de atividades sociais desenvolvidas pela embarcação, de campanhas de doação alimentos e agasalhos nos períodos de enchentes e calamidades à auxílio a instituições como Pão dos Pobres e Asilo Padre Cacique. 

A iniciativa dividiu a cidade. Nas redes sociais, inúmeras pessoas vieram a manifestar a opinião de que, por se tratar de uma iniciativa privada, deveria ser coberto pelo seguro e não por contribuição dos cidadãos, que deveriam ser destinadas aos mais pobres atingidos pela catástrofe. Por outro lado, outro contingente, manifestou sua posição favorável a contribuição e depoimentos no site da campanha indicam que o seguro contratado era de vida, não para a embarcação, daí a necessidade da campanha. 

O problema é que estas ações já são parte de um constituinte básico de nosso capitalismo cultural. O Cisne Branco nos diz que merece ser recuperado porque superou a dicotomia entre o consumo e o que você faz pela sociedade. Seus proprietários pegam o dinheiro dos ingressos e o retornam a sociedade através de impostos e ações sociais. Posso ficar aliviado porque eles fazem caridade com meu dinheiro. É a mesma lógica, afirma Slavoj Zizek, dos Starbucks, que prometem que você compra algo maior quando compra um produto. É o karma do “barco bom”: você não compra só uma viagem pelo Guaíba, você faz algo para ajudar crianças, semântica que diz que você deve realizar suas responsabilidades éticas...pelo consumo.


o navio naufragado

Ainda que repleto das boas intenções, o barco é um negócio capitalista de família. O mote da campanha está errado: ela se aproveita de nosso cinismo, de que estou fazendo doações a um empreendimento comercial privado que faz algo de bem pela cidade, lógica da caridade que desresponsabiliza o cidadão comum de suas obrigações. A imoralidade é usar a propriedade privada para aliviar os males causados pela instituição da propriedade privada.

A única maneira justificar as doações é dizendo a verdade: trata-se de salvar os valores do liberalismo defendidos pelos proprietários. Não se trata de ser contra a caridade, mas de assumir a necessidade pública de um empreendimento privado turístico. Que seu drama sirva para questionar a falta de infraestrutura naútica na capital, a necessidade de um abrigo público para embarcações, as formas do seguro náutico e a responsabilidade do poder público no fomento ao turismo. Não seria o caso da Secretaria de Turismo assumir a embarcação e a incluir em suas atividades?


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


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Pensamento Contemporâneo

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