Uma vaquinha para um cisne
Campanha de doação para recuperação de naufrágio coloca a questão: qual é o limite da caridade?
Com os temporais que assolaram Porto Alegre no último dia 19 de janeiro, a cidade ficou transtornada. Árvores derrubadas, prédios danificados, uma enorme extensão de danos materiais transformou de um dia para outro a paisagem de Porto Alegre. Uma grande ação da Prefeitura, envolvendo diversos órgãos, foi iniciada com o objetivo de recuperar a cidade.
Entre as vítimas do vendaval, pela primeira vez, o barco turistico oficial da cidade, o Cisne Branco, adernou no caís junto à Usina do Gasômetro. A dificuldade de recuperação, associada a imagem simbolo da cidade que o barco carrega fez com que seus proprietários iniciassem uma campanha de doação pela pela reconstrução do Cisne Branco (https://www.vakinha.com.br/vaquinha
/unidospelonossocisnebranco). A campanha ainda está distante de atingir seu objetivo: dos R$ 950.000,00 necessários para a recuperação do navio, apenas R$ 350,00 (trezentos e cincoenta reais), ou 0,23% do valor necessário, foi reconhecido. Culpa de nosso egoísmo em ajudar o próximo?
Seus apoiadores e proprietários vieram a público justificar a importância da contribuição voluntária dos cidadãos, demonstrando o amplo leque de atividades sociais desenvolvidas pela embarcação, de campanhas de doação alimentos e agasalhos nos períodos de enchentes e calamidades à auxílio a instituições como Pão dos Pobres e Asilo Padre Cacique.
A iniciativa dividiu a cidade. Nas redes sociais, inúmeras pessoas vieram a manifestar a opinião de que, por se tratar de uma iniciativa privada, deveria ser coberto pelo seguro e não por contribuição dos cidadãos, que deveriam ser destinadas aos mais pobres atingidos pela catástrofe. Por outro lado, outro contingente, manifestou sua posição favorável a contribuição e depoimentos no site da campanha indicam que o seguro contratado era de vida, não para a embarcação, daí a necessidade da campanha.
O problema é que estas ações já são parte de um constituinte básico de nosso capitalismo cultural. O Cisne Branco nos diz que merece ser recuperado porque superou a dicotomia entre o consumo e o que você faz pela sociedade. Seus proprietários pegam o dinheiro dos ingressos e o retornam a sociedade através de impostos e ações sociais. Posso ficar aliviado porque eles fazem caridade com meu dinheiro. É a mesma lógica, afirma Slavoj Zizek, dos Starbucks, que prometem que você compra algo maior quando compra um produto. É o karma do “barco bom”: você não compra só uma viagem pelo Guaíba, você faz algo para ajudar crianças, semântica que diz que você deve realizar suas responsabilidades éticas...pelo consumo.
Ainda que repleto das boas intenções, o barco é um negócio capitalista de família. O mote da campanha está errado: ela se aproveita de nosso cinismo, de que estou fazendo doações a um empreendimento comercial privado que faz algo de bem pela cidade, lógica da caridade que desresponsabiliza o cidadão comum de suas obrigações. A imoralidade é usar a propriedade privada para aliviar os males causados pela instituição da propriedade privada.
A única maneira justificar as doações é dizendo a verdade: trata-se de salvar os valores do liberalismo defendidos pelos proprietários. Não se trata de ser contra a caridade, mas de assumir a necessidade pública de um empreendimento privado turístico. Que seu drama sirva para questionar a falta de infraestrutura naútica na capital, a necessidade de um abrigo público para embarcações, as formas do seguro náutico e a responsabilidade do poder público no fomento ao turismo. Não seria o caso da Secretaria de Turismo assumir a embarcação e a incluir em suas atividades?