Em defesa da cortesia com a mulher
Na era da transformação da mulher em objeto de consumo, retomar o valor do feminino passa pelo retorno da cortesia entre homens e mulheres.
Muitas situações chamam a atenção pela atitude de descortesia com relação a mulher. Falamos muitas vezes da violência contra a mulher, estamos organizados para combate-la, ainda que com todas as dificuldades que encontram Conselhos de Defesa da Mulher, Delegacias da Mulher e por aí afora. Constatamos a violência contra a mulher como algo que deve ser banido do horizonte social, condenamos sua prática como algo vil e mal. Não se admite que em pleno século XXI seja possível praticar violência de qualquer espécie contra a mulher – como fazemos para combater a violência contra qualquer outro sujeito, negro, criança, etc. Mas há atitudes que deveríamos cultivar no dia a dia que também são importantes. A cortesia é uma delas.
Para mim, o exemplo maior de descortesia com a mulher foi quando em 2011, o Carnaval caiu durante a Semana da Mulher. Eu não sei porquê as feministas de plantão não reprovaram o fato à época. Cair a data no carnaval foi muito azar. Pois não há nada mais contraditório do que o fato da data que serve para a comemoração da luta pela independência feminina coincida com a festa que tem como característica principal a transformação do corpo da mulher em supremo objeto de consumo. Uma descortesia suprema do calendário.
Se não vejamos. Como se sabe, a data é referência ao dia 8 de março de 1857, quando operárias de uma fábrica de tecidos de Nova Iorque fizeram uma grande greve para reivindicar melhores condições de trabalho. Redução na carga diária de trabalho para dez horas, já que as fábricas exigiam 16 horas, equiparação de salários das mulheres com os homens e principalmente - isto é fundamental - tratamento digno dentro do ambiente de trabalho. A manifestação foi reprimida com total violência e as mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Com a data, entre outras coisas, além de debates, busca-se combater tudo o que desvaloriza a mulher.
O Carnaval desvaloriza a mulher? Para carnavalescos e o senso comum, ao contrário, é o lugar do seu espetáculo, festa onde as mulheres ocupam um lugar central. Ala das baianas, Porta-bandeira, mas principalmente passistas, muitas passistas, o que segundo seus organizadores “é a mulher brasileira oferecendo seu corpo à beleza da festa”. Espaço no qual invertem-se papéis sociais, como aponta a antropologia de Roberto Damatta, o fato é que desde que Pascal Bruckner e Alain Finkielkraut publicaram a obra A Nova Desordem Amorosa (Ed. Brasiliense, 1984) e Jean Baudrillard A Sedução (Ed.Papirus, 2001) , as coisas não foram assim tão simples. Bruckner & Finkiekraut apontaram que no Capitalismo, nada é mais natural do que o "mercado dos corpos", esse universo de avaliações que homens e mulheres fazem sobre si e sobre seus corpos mediados pela mercadoria. Baudrillard descreve o campo simbólico que envolve o feminino, para além do corpo e do sexo e que traz a tona o seu poder: "o homem detém o poder real, a mulher detém o poder simbólico”. Herdeiros do Maio de 68, a tônica é posta no desejo e não no corpo. O que eles querem criticar é o que traz para as relações humanas a ideologia do Capital "não há mercado maior do que a mesa de um bar onde corpos expõem-se para o olhar objetal do outro". Fim da troca, nascimento das relações de objeto.
Algo semelhante ocorre no Carnaval com a superexposição da mulher. A questão foi colocada originalmente por Georges Bataille em O Erotismo (LP&M, 1989): no abismo simbólico que separa o erotismo masculino do feminino, o feminino é superior, mas o masculino impõe sua hegemonia. Para Brucker & Finkielkraut, efeito da "maldição da descarga ligeira" (sic). O que ambos autores criticam é a vertiginosa lógica de exposição dos corpos das mulheres em nossa cultura, signo de uma sexualidade feminina construída para o deleite do olhar masculino. É a contradição do Carnaval em relação à mulher: não se pode olhar alegremente para a câmera e desvelar o corpo impunemente. O simbólico pede: um pouco de pudor, por favor!(Baudrillard).
Azar é azar, mas não se deve aceitar a coincidência sem refletir. No século XIX, tentou-se silenciar as mulheres queimando seus corpos. Em 2011 aceitou-se sem pensar que o Dia da Mulher e as festividades do Carnaval podiam ser conciliados - queima-se uma ideia. Dia da Mulher? Ôba, onde estão as mulatas? Total falta de cortesia.
Mas há algo estranho quando falamos da cortesia. Essa virtude do século XVI, tão bem descrita por historiadores como Norbert Elias, autor de ‘A sociedade da corte”, remonta a uma época onde o ritual preexiste às regras sociais. Ser cortês é um modo intrínseco de ser, o modo natural com o qual nos relacionamos com o Outro. É, talvez num certo sentido, a primeira forma da educação, se por ela entendemos aquilo que nos faz valer em relação ao Outro.
A cortesia era para ser, passados 400 anos, algo já assimilado ao mundo social. Deveria servir para definir o homem e a mulher. Deveria ser qualquer coisa, menos a primeira a abrir mão nas relações sociais.
As atitudes devem nos inspirar uma reflexão: não é apenas no combate as grandes “coisas” – a violência, etc – que devemos nos concentrar. Atitudes comezinhas falam de nossa natureza, e talvez por aí devemos recomeçar a avaliar o ser público que somos. Rejeitar tais atitudes é um dever para a sociedade, e seria bom, nestas horas, um pedido de desculpas. O que seria, numa palavra, a cortesia mínima a ser realizada com relação a estas mulheres.