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A escrita e a política

Como escritores começaram a descolar-se do seu campo e apresentaram uma visão de mundo política

Publicado: 2016-11-17


Os escritores nunca negaram a política, apenas tem receito dela. Grandes escritores foram notáveis políticos, como Emile Zola (1840-1902). Sua carta aberta intitulada J'acccuse (Eu acuso) foi destinada ao então presidente da França, Félix Faure em 1898. Diz Estevan: ” publicada no Jornal Literário L’Aurore, sobre o caso Dreifus, prisão (1894) de um oficial de artilharia do exército, de origem judia, Alfred Dreyfus (1859-1935), na Ilha do Diabo pelos militares franceses. Apesar do apoio de Zola, ele foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Costa da Guiana Francesa, acusado de alta traição, com base em documentos ilegítimos e um processo realizado por procedimentos irregulares. Depois da carta de Zola, o termo J'accuse entrou em uso popular como uma expressão para denunciar alguém julgado culpado em decorrência de uma injustiça.” 

No Brasil, um notável escritor que se engajou na política foi Antônio Candido (1918-.). Sociólogo, literato e professor universitário brasileiro, Antônio Candido é um notável estudioso da literatura brasileira e estrangeira com uma obra crítica extensa respeitada nas principais universidades do Brasil. Entre a obra em si e o contexto social, diz: “Tenho muita influência marxista – não me considero marxista – mas tenho muita influência marxista na minha formação e também muita influência da chamada escola sociológica francesa, que geralmente era formada por socialistas. Parti do seguinte princípio: quero aproveitar meu conhecimento sociológico para ver como isso poderia contribuir para conhecer o íntimo de uma obra literária. Depois entrei em contato com um movimento literário norte-americano, a nova crítica, conhecido como new criticism. E aí foi um ovo de colombo: a obra de arte pode depender do que for, da personalidade do autor, da classe social dele, da situação econômica, do momento histórico, mas quando ela é realizada, ela é ela. Ela tem sua própria individualidade. Então a primeira coisa que é preciso fazer é estudar a própria obra. Isso ficou na minha cabeça. ”


Antonio Candido

Para Antonio Candido, a questão central encontrar quais são os elementos da realidade social que se transformaram em estrutura estética. Para o escritor, a obra O Cortiço, de Aluízio Azevedo, não pode ser lida sem uma análise do contexto social. O autor sabe do que está falando. Com Paulo Emílio Salles, Gomes, Décio de Almeida Prado e outros fundou a revista Clima. Casado com a escritora Gilda de Mello e Souza, colega de revista, foi militante do Partido Socialista Brasileiro, fazendo oposição à ditadura Vargas nos anos 40, e nos anos, 80, foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores.

Em “Pensar o mundo”, Adauto Novaes analisa as relações entre arte e pensamento, um caminho importante para situar o papel da literatura no mundo. Novaes lembra que para Henri Michaux, a ciência que pretendeu responder a todas as questões não consegue dizer onde estamos e para onde vamos. Vivemos, afirma Novaes, um período marcado pelo desaparecimento de todos os referenciais, de nos orientarmos pelo pensamento e por isto o retorno às artes, a literatura, por substituírem a tendência de explicar o mundo por meio de conceitos como faz a ciência, mas optarem por falar de experiências de mundo, de onde a ficção retira sua força. 

Novaes lembra que o filósofo Jacques Ranciére aponta no livro A política dos poetas, que a constituição filosófica da política excluía sua contrafação, “a constituição poética da política, aquela que, a o incluir a tragédia dos poetas nas suas instituições, põe de volta seu regime de vida sob a legislação dos muthoi poéticos e do prazer sofredor do teatro, instalando nele o comando desregrado produzido pela aparência poética” (P.8). Quer dizer, nas origens na antiguidade greco-latina, o nascimento da tragédia é inseparável da organização cívica e da construção da democracia ateniense. O historiador Jean Pierre Vernant afirma que “Por trás da tragédia há uma interrogação geral: qual a relação do homem com seus atos? Em que medida ele é realmente o autor de seus atos? Seus atos não são a resultante de outros elementos dos quais ele só vai perceber mais tarde? (...) a presença daquilo que chamo o mundo, o universo, não é um universo simples. Ele é ambíguo e contraditório, uma vez que as divindades que intervém na cena trágica também são cindidas. Não se trata de condenar, trata-se de mostrar as dificuldades de compreender o que é o homem nas suas relações com o universo ambíguo” 


O filósofo jacques ranciére

Para Jacques Ranciere, o poeta participa do pensamento político de uma forma peculiar, um não pertencimento ao “ignorar os usos da política”. Os escritores vivem pertencendo e não pertencendo a política, pois vivem-no conceito limite, no abismo criado pela própria política em defesa da liberdade. A tragédia é apenas uma forma literária usada por Ranciére para mostrar que expressões da literatura levam ao homem interrogar-se em suas ações. Mesmo a poesia lida com o pensamento, interroga o mundo, faz à sua maneira uma espécie de ciência das coisas e do homem no mundo, no sentido de invenção, de experiências sensíveis que permitem o entendimento. É só olhar o significado de poesia, do grego poíesis, quer dizer, criação, fabricação, composição de obras poéticas. São ideias ainda que não sejam teses, são matrizes de ideias, ainda que não são provas cientificas, a literatura não convida o leitor a um consumo passivo, antes, chama a participar da obra literária por meio de interpretações.

A literatura está cheia de exemplos de autores que fundamentaram suas histórias e seus personagens no campo da política. Na crítica nacional, foi Barbara Heliodora, ainda no distante ano de 1978, que percebeu a importância do elemento sociopolítico em toda a obra de Shakespeare. O escritor inglês tem uma visão peculiar da política, fala das coisas da política como elas são e não como deveriam ser. Tanto na trajetória de Henrique VIII como de Elizabeth I, a crítica Heliodora afirma que Shakespeare escreve observando a máxima “a ordem no estado e a obediência cega ao príncipe hereditário”, então lei máxima da política. Nada impede, no entanto, a emergência do humano. Quer dizer, nas tragédias, dramas históricos, comédias o veio político é uma espécie de “sistema sanguíneo”, forma o suporte, liga as partes, nutre a visão de homem e sociedade. 

A conclusão é que o político se traduz em estrutura dramática, como afirma Antônio Candido no prefácio da obra. Boas análises das relações politica e literatura imitam a estratégia de Heliodora, que recebeu  elogios porque sua obra  justamente evitou impor ao texto shakespeariano pressupostos políticos, filosóficos ou históricos estabelecidos de antemão mas “mostrar de que maneira o poeta manipulou na sua farmácia prodigiosa as fórmulas dramáticas mais adequadas para encarnar uma certa visão das coisas. Os pressupostos históricos e políticos só adquirem significado na medida em que são ingredientes dela “ (P.12). A literatura não pode ser colocada numa camisa de força, mas seus ingredientes, se lidos a contrapelo, mostram notáveis diagnósticos dos tempos em que vivem seus autores.


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


Publicado en

Pensamento Contemporâneo

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