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Os novos desertos urbanos

Publicado: 2016-12-06


Foi o blogueiro Luis Roberto Marinho que apontou que as livrarias, na tentativa de atrair maior público e elevar as vendas,  incorporaram cafés, restaurantes, teatros, mas também vender itens de papelaria, eletrônicos, celulares, chocolates e brinquedos, entre outros. Pior, há livrarias investem em beleza. A Barnes & Noble instalou em 4 lojas uma área para vender desde marcas mais caras, como Smashbox, até as mais acessíveis, como CoverGirl, L’Oréal e Maybelline  "O objetivo é explorar a conveniência, impulsionar as compras por impulso e, mais importante, fazer com que as livrarias em universidades se transformem de lugares onde as pessoas precisam ir, para comprar seus livros de estudo, em um lugar onde as pessoas gostam de ir, por conta dos produtos de desejo. " Não tem sentido uma livraria vender batons, rímel, esmaltes e xampus, prova de que o varejo não segue a lógica do passado. 

Os shoppings estão em expansão por todo o lugar. Em Porto Alegre, já se fala em novos empreendimento para os próximos anos. No último que visitei, confesso que fiquei um pouco decepcionado. Percorri os quase dois mil metros quadrados de obra e os quatro pavimentos e não encontrei uma livraria de grande porte. Você caminha, caminha, caminha e nada. Você se imagina ali, como num deserto, deitado no chão, sob o calor da luz das luminárias, sedento de sede “um livro, um livro!”. Falo com a recepcionista “- Não tem livraria?” ”- Olha, parece que vai ter, mas não se sabe qual e nem quando não”. A mulher da fila me olha e ri como se pensasse: “Livraria para quê?” 


Lugar de leitura ou lugar de consumo?

Essa é a questão. Milhares de pessoas circulando por esses novos pontos de centralidade urbana e sociabilidade para massas e ninguém se dá por falta delas.Quando há livrarias, poucas realmente tem coleções de ciências humanas de destaque, obras raras ou importadas. Seus donos preferem abrir espaços para bares, espaço para vendas de celulares, tudo o que uma livraria não é. As livrarias dos shoppings estão cheias de espaços distantes do perfil tradicional de livrarias, e sequer respeitam a lei do silêncio: agora, pode-se ouvir a exaustão shows de música gritante no seu interior: esqueça qualquer esperança de ler um livro.   

Procuro livrarias nos shoppings porque elas são, com suas estantes e livros, o negativo da extensão do espaço comercial que o cerca. O livro é uma mercadoria, é claro, mas a livraria ainda preserva algumas de suas características originais: é um lugar onde se pode simplesmente parar e ler - até sem comprar nada - e assim, é como ar puro que se pode respirar no meio do ar poluído por tanto consumismo; ali ainda se tenta preservar o caráter sagrado do silêncio – você não vê correrias e o barulho é bem menor do que no resto do shopping, com suas áreas de alimentação ruidosas e cheirando a fritura e finalmente, e o melhor de tudo, o toque dos celulares são vistos como blasfêmia. "Amo muito tudo isso" .


Ler ou tomar um sorvete?

Dizem os sociólogos que os shoppings são nossos novos templos porque no fundo, no fundo, as pessoas circulam por estes espaços a procura de algo que as transcenda, algo que as ultrapasse. A experiência de circular nele possibilita esse a-mais , que tem no fetiche das mercadorias ali expostas a forma da sua ilusão. Por esta razão, milhares de pessoas simplesmente circulem por ele sem comprar nada, pelo simples prazer de estar próximo de outras pessoas – desejo de sociabilidade, diria Michel Maffesoli. Fazíamos isso antes nas praças e nas ruas, e nossos avós no antigo footing da Rua da Praia, mas agora, com toda essa violência....

Tudo isso é muito diferente de quando, em 1935, muitos anos antes de criação dos primeiros shoppings centers, Frank Lloyd Wrighy, em sua obra The living city, fez a descrição premonitória do que seriam no futuro os grandes shoppings. Ele os via como “vastas áreas destinadas ao prazer [a partir dos] espaços de mercado“ – numa palavra, como as lojas de hoje. Mas havia em sua premonição um detalhe instigante, de que esses espaços “seriam concebidos como lugares de troca não somente de produtos comerciais, mas também de produções culturais”. Esse espaço é ocupado hoje pelas livrarias, espaço dos shoppings onde ao menos podemos substituir a pergunta “ O quem tu tens?” pela “Quem tu és” (Goethe).


Sem livrarias, um shopping torna-se um espaço urbano no qual a imagem ocupa toda a hegemonia simbólica do lugar. É um deserto de idéias em meio a uma vastidão de mercadorias. Não nos enganemos: ele é um empreendimento imobiliário que oferece o que os pobres não podem pagar e que possui uma simbologia que exclui aqueles que não sabem decodificar seus sinais. Mas, ao menos numa livraria, todos ainda podem, mesmo que seja por alguns instantes, ler poucas páginas livremente e sem pagar nada. Ainda, eu disse. Se é para não ter livrarias, então que voltemos a fazer como os fenícios, que passavam de barcos e deixavam um objeto na praia e mais tarde voltavam para ver se alguém o tinha levado e posto alguma coisa no lugar. Do jeito que está, prefiro as paradas de ônibus com estantes. Pelos menos elas chamam pelo conhecimento, ao contrário de shoppings, que sem livrarias são como desertos.

*Jorge Barcellos é historiador, Mestre e Doutor em Educação. É chefe da Ação Educativa do Memorial da Câmara Municipal de Porto Alegre. É autor de Educação e Poder Legislativo (Aedos Editora, 2014). Mantém a coluna Democracia e Política do Jornal O Estado de Direito.


Escrito por

Jorge Barcellos

Doutor em Educação. Autor de "Educação e Poder Legislativo"(Aedos Editora). Colaborador do SUL21, Estado de Direito e Jornal Zero Hora.


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Pensamento Contemporâneo

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